Encruzilhada da história

Encruzilhadas da História 

 Corria o ano de 1971. Estava a prestar serviço militar em Angola. Era piloto de helicóptero na Base Aérea nº 9, Luanda. Aproximava-se a Páscoa. Recebi um convite do amigo Neca (Manuel da Silva Ferreira) e Família, para almoçar na sua morada, no Musseque de Sambizanga. Aceitei de bom grado pois era uma Família humilde mas respeitável e da minha terra: Junqueira – Vila do Conde. Recebi alguns “conselhos” dissuasores: que era um perigo, aquilo era um ninho de terroristas, um militar expor-se naquela zona era um risco enorme… E afiançavam-me que já tinham encontrado no mato, terroristas com o bilhete de cinema do domingo anterior, ou seja, tanto estavam em Luanda como no coração da floresta, de armas na mão. Eu não tive medo e nem sequer hesitei. Apesar de as cerimónias religiosas na Base serem muito concorridas avancei para partilhar aquela refeição simples e sem luxos junto de um amigo de infância com quem brincara em criança. À noite fui visitar o professor Santos Júnior, catedrático que ali se encontrava destacado a ministrar antropologia. Também ele censurou a minha imprudência pois conhecia os relatos que se faziam daquela zona da periferia, onde se acoitavam marginais de todos os matizes. Enfim, ele queria proteger-me, apenas. A conversa foi-se alongando pela noite fora. Ele tinha o hábito de jejuar, uma vez por mês Sei que viveu até perto dos cem anos. Nesse dia, bebia apenas cerveja e tomava café, para queimar calorias excedentárias e limpar o tubo digestivo de resíduos supérfluos. Terapia excelente. Casualmente falei no futuro de Angola. Eu imaginava que seria um novo Brasil onde todos viveriam em liberdade e coexistência pacífica. Mas seria imprescindível a independência. Estranha e bruscamente ele nem sequer admitia essa hipótese, por remota que fosse. E desfilou perante a minha incredulidade, uma série de argumentos__ que eram apanágio de uma certa intelectualidade conservadora e devotada ao culto do regime__ onde a par de crítica acerba à raça negra e suas limitações ancestrais, tecia considerações que roçavam um hipernacionalismo doentio. Enfim, património dos nossos antepassados nunca deveria ser entregue sob pena de traição à Pátria. Eu, ao admitir que dentro de quinze ou vinte anos, passando por diversas etapas__ admitindo os terroristas na administração pública, com um critério de seletividade muito rigoroso, é óbvio, ou, quiçá, na vida empresarial __ seria, como explicou com desagrado, um ingénuo capitulacionista, alguém pouco confiável. Falei-lhe na voz da história, nos precedentes já criados, mas nada o demoveu. Deixei de lá ir pois o diálogo era impossível. Soube que teve contactos com oficiais da BA 9. Eu, passado cerca de um mês, regressei à Metrópole. Fiquei estupefacto com um relatório que procurava “explicar” os problemas de taquicardia, elevada tensão arterial e úlcera duodenal. Ainda hoje me interrogo sobre o significado da douta expressão nele contida: «Prática de voo em ambiente aeronáutico não vislumbrado»… Autor: José Manuel Figueiredo Leite de Sá

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